Pode ler aqui, na íntegra, o artigo de Abel Sequeira Ferreira publicado no ECO em 18/10/2021, sobre a irracional medida de “englobamento das mais valias com investimentos em ações até 12 meses para os contribuintes no último escalão de rendimentos”, a total ausência de uma estratégia no OE2022 para o desenvolvimento do mercado de capitais, e a quebra de compromisso do Governo para com os principais agentes do mercado quanto às medidas fiscais de promoção do mercado.

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Artigo “DESENGLOBAR O FUTURO”
Em outubro do ano passado, realizou-se a sessão pública de apresentação do Relatório de avaliação da OCDE sobre o mercado de capitais em Portugal (“Mobilizar o mercado de capitais português para o investimento e o crescimento“), com base numa reflexão exaustiva que identificou os principais obstáculos ao desenvolvimento do mercado e apresentou recomendações para a respetiva mobilização.
Na sua intervenção, o Ministro das Finanças referiu-se ao mercado de capitais como um “pilar essencial na captação de poupança e no financiamento da economia”, considerando “da maior importância – e um compromisso deste Governo – contribuir decisivamente para a promoção do nosso mercado de capitais”, acrescentando ainda que “em especial no atual contexto de apoio à recuperação da nossa economia, o mercado de capitais pode – e deve – desempenhar uma função essencial na capitalização e financiamento de empresas e na captação de poupança para esse fim”.

Não há nada de ambíguo nestas palavras, com as quais, na ocasião, intervindo na mesma sessão pública, tive oportunidade de concordar, e não parece poderem existir dúvidas quanto ao alcance do compromisso público ali assumido pelo Governo português.

Ora, ao assumir esse compromisso, o Ministro das Finanças não podia deixar de ter presente que, como é o caso da generalidade das análises sobre o mercado português, na “análise exaustiva e rigorosa que produziu sobre os principais obstáculos ao desenvolvimento do mercado de capitais em Portugal” a OCDE concluiu que as medidas fiscais, não sendo suficientes, são cruciais para o desenvolvimento do mercado, entendimento que também sempre partilhei e defendi.

E que, coerentemente, o Relatório da OECD entre várias outras medidas de natureza fiscal, refere explicitamente a “criação de um regime fiscal especial para o investimento no mercado acionista por investidores não profissionais” como uma das propostas de atuação fundamentais para a dinamização do mercado de capitais.

Assim, em primeiro lugar, o ponto que agora importa verificar, é o de saber se a subsequente atuação do Governo honra o compromisso (nacional e internacional) que assumiu.

Ora, um ano depois, a única medida especificamente dedicada ao mercado de capitais contemplada no Orçamento de Estado para 2022 é o englobamento das mais valias com investimentos em ações até 12 meses para os contribuintes no último escalão de rendimentos.

Uma medida que ataca os pequenos investidores particulares com maior capacidade de aforro e investimento, que tem um impacto que o Ministro das Finanças já reconheceu publicamente não conseguir prever com exactidão e que igualmente considera poder conduzir a “alguma alteração comportamental dos agentes”.

A medida é contraproducente: de facto, porque confrontados com um inexplicável agravamento fiscal, existirá certamente uma alteração comportamental dos investidores afetados e um desvio para outras soluções de investimento, possivelmente ainda em 2021, com a consequente diminuição da liquidez no mercado e redução do imposto arrecadado em mais valias.

A medida é injusta e potencialmente inconstitucional: em virtude deste novo confisco, os contribuintes com rendimentos brutos mais altos poderão vir a obter rendimentos líquidos mais baixos do que outros que tenham rendimentos brutos menores. 

A medida é incoerente e contraditória: gera incerteza quanto à taxa de imposto a final aplicável, levando os pequenos aforradores particulares a desinvestir no mercado de capitais português e nas empresas portuguesas, criando incentivos a ainda maior endividamento com recurso a capitais alheios e prejudicando o desígnio de capitalização das empresas e de redução da dívida total nacional.

A medida, independentemente do seu impacto concreto, tem efeitos reputacionais e financeiros, potencialmente catastróficos para uma economia da nossa dimensão: a confiança é crucial para quem investe e, deste ponto de vista, este novo englobamento acrescenta um novo problema de credibilidade da política fiscal portuguesa e de grande incerteza para muitos agentes económicos com impacto expectável na redução do seu investimento em Portugal.

A medida, penalizando o aforro e o investimento, afastando os investidores particulares com maior capacidade de investimento das empresas portuguesas, e dando um sinal errado de incentivo ao endividamento, é uma medida espúria, com fundamento puramente ideológico e falaciosamente construída sobre uma referência tecnicamente errada a “rendimentos de capital especulativo”.

Ao atacar o segmento da população no qual existe maior capacidade de poupança, o Governo está a convidar os investidores nacionais, atuais e potenciais, a emigrarem essa poupança para mercados e empresas estrangeiras, ou para outros setores de atividade económica alguns dos quais potencialmente especulativos ou não regulamentados.

Infelizmente, porém, o englobamento nem sequer é o pior erro deste Orçamento.

Porque, em segundo lugar, a inscrição desta medida apenas revela, ou confirma, a visão limitada que o Governo tem do mercado de capitais.

O erro verdadeiramente trágico, e pelo qual voltaremos a pagar um preço muito elevado, é a ensurdecedora ausência, no Orçamento, de uma reflexão estratégica sobre o rumo orientador das políticas adotadas e, nesse plano, sobre o papel que o desenvolvimento do mercado de capitais deve desempenhar na capitalização das empresas, no crescimento económico e na criação de riqueza e de emprego.

Como venho defendendo há décadas, um mercado de capitais desenvolvido e dinâmico seria crucial, designadamente, para a maior captação de investimento direto estrangeiro, para o financiamento e capitalização das empresas, para a criação de emprego, para o reforço das exportações, para a facilitação de processos de sucessão nas empresas familiares, e para a adoção das melhores práticas de governo das sociedades.

A verdade é que Portugal nunca necessitou tanto como no momento presente de vias alternativas de financiamento do setor privado, que canalizem poupança para as empresas em complemento à concessão de crédito pelo sistema bancário.

O mercado de capitais é (vai ser ou seria) essencial para dar resposta aos desafios simultâneos com que nos confrontamos: da recuperação económica pós-Covid, da descarbonização da economia, e da transição digital, aos quais, pela sua dimensão, o Estado não conseguirá dar resposta, tal como o sistema bancário, limitado por restrições conhecidas.

Pelo contrário, a ausência de uma visão estratégica sobre o crescimento da economia e a sustentabilidade do investimento, agravada por preconceitos ideológicos iníquos e inimigos das empresas, do desenvolvimento do país e de políticas públicas de qualidade, condenará o país ao desperdício da oportunidade criada pelo Relatório da OCDE e, desprezado esse momentum, ao agravamento da depreciação das fontes de financiamento e investimento.

Por fim, e lamentavelmente, há ainda um terceiro e último aspeto a destacar, porque o englobamento representa igualmente a violação de um compromisso fundamental do Governo com o mercado e com as empresas.

É importante recordar que, na sequência da apresentação do Relatório da OCDE, e do compromisso público que assumiu de desenvolvimento do mercado, o Governo criou um Grupo de Trabalho, constituído pelos principais representantes do mercado nacional, para, com base naquele estudo, propor medidas concretas de dinamização do mercado de capitais português, e de capitalização do tecido empresarial, tendo em vista dotar as empresas portuguesas com mais capital privado.

Este grupo de especialistas, que tive a honra de integrar, trabalhou de forma afincada, discutindo, produzindo e concluindo um documento final que foi aprovado em setembro de 2021, muito em tempo de o seu conteúdo ser devidamente refletido no Orçamento de Estado.

Aliás, o conteúdo das discussões mantidas e que permitiram alcançar um consenso não escrito quanto à esmagadora maioria das matérias logo em abril de 2021, foi sempre do conhecimento do Ministério das Finanças que participou de forma permanente e (pro)ativamente em todo o debate.

Os membros do grupo de trabalho, em coerência com os imperativos éticos e de lealdade que sempre pautaram a sua intervenção, não revelaram publicamente o conteúdo do documento final apresentado ao Governo.

Era responsabilidade do Governo ter divulgado o trabalho produzido em tempo útil e, por razões evidentes, agora passou a ser ainda mais imperioso que essa divulgação seja realizada com a maior urgência.

Em qualquer caso, neste momento, não podemos deixar de notar que, com certeza não surpreendentemente, entre vários outros temas, o documento final aprovado contém várias propostas de natureza fiscal, incluindo medidas pontuais de dinamização do mercado, no curto prazo, e medidas estruturais, para o longo prazo.

As medidas acordadas, aliás, na sua redação final, em alguns casos bastante diferentes das propostas originalmente apresentadas pelas partes envolvidas, são precisamente o resultado das muitas cedências que foram sendo feitas para possibilitar um consenso que incluísse os representantes do Ministério das Finanças.

A ausência de todas estas medidas no Orçamento de Estado, agravada pela inclusão de uma medida gravosa de sinal contrário, quando o caminho estratégico a seguir deveria ter sido exatamente o oposto (e no caso concreto, de isenção da tributação de mais-valias e de redução da tributação de dividendos), constitui, pois, uma séria violação do compromisso da dinamização do mercado assumido pelo Governo perante a OCDE e a Comissão Europeia.

E, sobretudo, constitui uma grave quebra de confiança para com os principais representantes do mercado, que, com seriedade e de boa-fé, ofereceram a sua experiência, conhecimento e disponibilidade em prol do futuro do país, mais uma vez hipotecado no processo artificioso da irracionalidade política e dos extremismos ideológicos.

Abel Sequeira Ferreira
Diretor Executivo
AEM – Associação de Empresas Emitentes de Valores Cotados em Mercado